quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Epílogo

Jazia na cama aos 82 anos. Somente o corpo estava ali, quase inerte. O coração se quebrara há muito tempo, na juventude ainda. Sabia que se quisesse viveria mais um dia ou dois. Muito mais até. Mas para que? A dor lhe consumira o semblante alegre da juventude. As perdas que ele sofrera lhe endureceram o coração. Depois da juventude roubada pelo sofrimento, aquele homem nunca mais existiu de verdade. A alegria era puro fingimento como a maquiagem de um palhaço triste que risca a boca dissimulando um sorriso.
Pra que prolongar ainda mais seu sofrimento? Vivera 82 anos e já era o suficiente. Sentia sede. Sua garganta estava seca e pela fresta da janela entravam os primeiros raios de sol. A noite fora quente e sem vento. O homem não dormira um minuto se quer. Ficara rememorando - primeiro a sua infância alegre, as brincadeiras, depois a juventude, os amigos. A mulher amada e depois odiada. Não tivera filhos, pois achava que não seria um bom pai - talvez fosse, mas não arriscou.
Vivera sozinho até os 82 anos, acostumado com o som da rua que entra pela janela do quarto. Os passos, as conversas. Ouvia a vida dos casais que freqüentavam a praça da frente. Conhecia o mundo da janela. Teve medo de sair, mas Nunca temeu a morte. Sentiu a perda da juventude, dos pais. Os irmãos se foram. Os amigos, um a um se distanciaram. Envelhecera. Sentia que faltava um pedaço seu. O coração arrancado de dentro do peito como se tira da azeitona o caroço indesejado.
Pensou em beber um último copo de água. Ainda que soubesse que teria forças para se levantar. Preferiu ficar com sede. Uma lágrima escorreu dos olhos. Estaria perto deles outra vez. Iria rever os únicos que o amaram. Eles que lhe foram abruptamente arrancados, sem qualquer explicação - pensava apenas que era vontade de Deus aquelas perdas. Depois de tanto tempo estariam juntos outra vez.
Ficaria ali deitado. Jazendo até que alguma alma sentisse o mau cheiro e viesse buscar o seu corpo. A casa seria doada para alguém que precisasse, ou então o governo tomaria posse e a transformaria em mais uma repartição burocrática. O homem ali deitado abominava esta idéia. Jamais assinara um papel. Odiava mortalmente os papéis. Quando jovem fora professor, mas também não seguira a carreira, pois não respeitava as regras. Fora boêmio e da arte vivera. Talvez se respeitasse as regras fosse feliz, mas não se arriscou.
Ficaria ali deitado por muito tempo, horas, dias, meses se fosse preciso, a decisão estava tomada. Ele não movimentaria mais o corpo embora ainda algumas contrações espontâneas o fizessem por ele. Mexeu somente a cabeça e observou o espelho no guarda-roupa antigo que fora passado de geração a geração e que agora apodrecia com os cupins. Deu um sorriso sarcástico.
Lá fora o prenúncio da tempestade. Pensava em reler as cartas e as histórias que escrevera enquanto jovem. Ele sabia que em algum lugar descrevera a própria morte. Ela não seria assim. Estaria com alguns amigos e um acidente fatal o levaria. Bobagens da juventude - pensava agora. O vento forte bateu na janela e rompeu a tranca de madeira fechada há muitos anos. Sabia que já estava na hora. O relógio da igreja bateu 12 vezes.
O homem se levantou, lamentou pela última vez todos os seus anos. Prendeu a janela para que ela parasse de bater. Queria ouvir somente o barulho do vento. Sentiu o vento molhado batendo no rosto pela última vez. Voltou para a cama. Não pensou em nada. Os passos das pessoas na rua se confundiam com as batidas do seu coração. Se viu mais uma vez para o espelho. Sorria um sorriso bobo como há muito tempo não sorria. Olhou para a janela. Cerrou os olhos lentamente e, como costumava dizer na juventude, se foi com vento oeste para nunca mais voltar.

mário coração dos outros

2 comentários:

Patrícia disse...

Será que é mesmo? Nós terminamos no vento oeste?

Nanda disse...

terminar já é algo muito bom...

continuar eternamente seria péssimo...