terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Benedita

Benedita morava na casa 14 da Rua Pedro II, daquela Boa Esperança onde eu nasci. Benedita era minha vizinha. Era também a mais nova dos oito filhos do seu Pedro Maluco e regulava de idade com a minha irmã mais velha, a Dorinha.
Benedita não era muito querida pelas crianças da cidade. Todos zombavam da menina por causa da debilidade do pai. Outra coisa que ninguém gostava na Benedita era a cor. Os meninos chamavam-na “Pretinha”, “Cabelo-Duro” e outras coisas que faziam a menina morder os lábios de raiva.
Só uma pessoa gostava de verdade da Benedita: minha mãe. Ela não ficava um dia sem falar bem da menina. Às vezes a Dorinha, cheia de ciúmes, falava pra minha mãe que ela gostava mais da “pretinha” do que da gente - eu também pensava isso, mas não gostava de magoar a minha mãe. Com toda a calma do mundo, minha mãe explicava que tinha dó da menina. Que ao contrario da nossa, a família de Benedita não lhe dava atenção e às vezes nem comida.
Lembro da primeira vez que a Benedita dormiu na minha casa. Eu ouvi minha mãe falando pro meu pai que ela ficaria alia até que mãe dela melhorasse. Naquela noite minha mãe fez sopa e a Benedita lambia os beiços enquanto comia. Depois, na hora de dormir, a Benedita deitou num colchão que a minha mãe arrumou pra ela e ficou lá chorando sozinha por um tempão.
Todas as manhãs eu ia com a Dorinha e a Benedita pra escola. Minha mãe fazia questão e dizia que a menina era ajuizada. A Dorinha sempre fazia cara feia mas obedecia. A Benedita costuma sempre contar histórias que a avó dela, que tinha sido escrava, contava. A menina falava da senzala, dos fantasmas, de Sacis e Mulas sem Cabeça e meus olhos brilhavam de curiosidade. Até hoje lembro a voz doce da Benedita contando essas histórias.
Uma vez eu estava no armazém de Secos e Molhados quando Sr. Pedro Maluco passou por lá e eu escutei dois homens falando sobre ele:
- Coitado do Maluco, o melhor mestre de ofícios acabar desse jeito – Disse o sujeito gordo.
- Dizem que foi a bebida – falou o de bigode.
- Deus me livre! – disseram os dois, enquanto faziam o sinal da cruz e tomavam mais um trago de cachaça.
Cada vez mais eu sentia pena da Benedita. A menina tinha mais sete irmãos e mais nenhum morava ali. O mais velho morreu numa briga. A segunda irmã casou e foi morar na Bahia. Os outros foram, um atrás do outro, mudando da cidade. Primeiro foram pra São Paulo depois só Deus sabe pra onde. O Pedro, que eu cheguei a conhecer, foi embora com um circo que apareceu na cidade. Uns diziam que ele se enamorara da bailarina, outro porque ele queria ser palhaço. Tudo poesia. Em minha opinião ele foi mesmo porque sempre dizia que um dia ia correr o mundo e conhecer vários lugares. Sobraram o Pedro, a Benedita e a Mãe.
Numa tarde quando vínhamos da escola vi minha mãe chorando na porta de minha casa. Ela correu e abraçou forte a Benedita. Eu só ouvi minha mãe minha mãe dizendo que nada de mal aconteceria a ela e então a Pretinha começou a chorar também. Só depois eu fiquei sabendo que a mãe da Benedita tinha tido um infarto – o que na época não tinha a menor noção do que era.
Depois do enterro da mãe, a Benedita foi morar no sítio com a avó escrava e eu quase não via mais a “Pretinha” porque ela teve que mudar para a escola da fazenda. Aos domingos quando ela da missa pra ver o Sr. Pedro eu encontrava a menina. Nesses dias minha mãe costumava fazer o almoço e convidar Benedita para passar o resto do dia com a gente. Eu ficava a tarde toda perto dela ouvindo histórias da fazenda. Ficava imaginando os cavalos e as brincadeiras na lagoa. Sentia o sabor das frutas no pomar e ouvia os fantasmas na senzala, tudo embalado pelas narrativas da menina.
Não me lembro de tanta felicidade estampada no rosto da minha mãe como no dia em que a Benedita a chamou para ser madrinha de Crisma. Minha mãe preparou a roupa de missa e contou para toda a vizinhança que boa nova. Nessa época também morreu o Pedro Maluco e da família da Benedita só sobrou à avozinha.
Num domingo a Benedita apareceu meio triste na minha casa. Ela contou que queria fazer o curso de normalista junto com a minha irmã, mas avozinha não queria deixar porque Benedita teria que vir todas as noites até a cidade e poderia ser perigoso. Feliz da vida, minha mãe convidou a menina para morar com a gente. A Dorinha não gostou muito porque teve que dividir o quarto com a Benedita, mas a menina era tão encantadora que aos poucos foi cativando a Dorinha.
A Benedita era sempre mais aplicada nos estudos e acabava ajudando a Dorinha que só queria saber de namorar. A amizade das duas ficou tão forte que a Benedita acabou se tornando cúmplice dos namoros da Dorinha e chegou a ser repreendida pelo meu pai.
Foi a Benedita quem sofreu toda a ira do meu pai quando a Dorinha foi morar com o namorado na capital. Meu pai chamava a menina de traidora e a minha mãe, com toda calma do mundo acalmava meu pai dizendo que a Dorinha não seria mesmo uma boa professora e que o melhor pra ela era casar. Acho que por isso e por remorso a minha irmã deu seu primeiro filho pra Benedita batizar. Eu fui o padrinho.
Depois de tudo isso, virei funcionário público e acabei indo morar fora. Constituí minha própria família e raramente ia visitar a minha mãe. A Benedita virou professora e quando arrumou um noivo, fez com que ele fosse pedir o consentimento do meu pai. Ela casou e teve 3 filhos. A “Pretinha” ficou conhecida como a melhor professora da cidade e depois que morreu virou até nome de rua.
Apesar de todo esse sofrimento e reconhecimento, o maior feito da Benedita, pelo menos pra mim foi à dedicação que ela dispensou a meus pais. Quando minha mãe morreu, ela levou meu pai pra morar com ela na casa que era do Pedro Maluco e cuidou dele até o fim.
Eu sinto saudades das histórias da Pretinha. Sinto saudades das brincadeiras, dos insultos e das brigas, mas o que mais sinto é nunca tive coragem de chamá-la de minha irmã.

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